23.4.07

Proteção à dignidade da pessoa não prescreve

RECURSO ESPECIAL Nº 816.209 - RJ (2006/0022932-1)

RELATÓRIO

O EXMO. SR. MINISTRO LUIZ FUX (Relator): Trata-se de recurso especial interposto por HÉLIO DA SILVA, com fulcro no art. 105, inciso III, alíneas "a" e "c", da Carta Maior, no intuito de ver reformado acórdão prolatado pelo E. Tribunal Regional Federal da 2.ª Região, sob o fundamento de o mesmo ter malferido os arts. 8.º, § 3.º, do ADCT, da Constituição Federal de 1988; 14, da Lei n.º 9.140/95; a lei n.º 10.559/2002; bem como o art. 462 do Código de Processo Civil. Apontou, ainda, a existência de dissídio pretoriano acerca da questão posta nos autos.

Noticiam os autos que o ora recorrente, em 14/11/2000, ajuizou ação ordinária em desfavor da UNIÃO, ora recorrida, objetivando o pagamento de indenização a título de danos materiais, no valor de R$ 630.000,00 (seiscentos e trinta mil reais), e a título de danos morais, no valor de R$ 151.000,00, cento e cinqüenta mil reais, com o acréscimo de juros e correção monetária, bem como o pagamento de pensão vitalícia (parcelas vencidas e vincendas), no valor mensal de R$ 1.500,00 (mil e quinhentos reais), com efeitos financeiros a contar da entrada em vigor da Lei n.º 9.140/95).

Em sua exordial, o ora recorrente em síntese aduziu que, por ocasião de sua atuação política em defesa das Instituições Militares e contra o "Golpe Militar", de 31 de março de 1964, foi preso por agentes militares do 1.º Exército, em 29 de março de 1972, tendo sido torturado e, posteriormente, condenado pela Segunda Auditoria da Marinha à pena privativa de liberdade de 15 (quinze) anos, 07 (sete) meses e 06 (seis) dias, sendo libertado somente em 05/02/1980, por força da Lei de Anistia. Afirmou assim que, em conseqüência das torturas a que fora submetida, tornou-se portador de síndrome do pânico e "paranóia de perseguição", que o obrigaram a submeter-se a tratamentos médicos até os dias atuais. Alegou, ainda, que à época do ocorrido exercia a profissão de motorista, tendo sido demitido em 14 de março de 1972 por perseguição política.

O juízo federal de primeiro grau, reconhecendo a ocorrência, in casu, da prescrição qüinqüenal (Decreto n.º 20.910/32, art. 1.º), julgou extinto o processo com julgamento de mérito, condenando o autor da demanda ao pagamento de despesas processuais e honorários advocatícios, estes fixados em 10% sobre o valor da causa. Na ocasião, entendeu o i. Magistrado que o direito pleiteado pelo autor surgiu com o advento da Constituição Federal de 1988, que concedeu anistia a todos aqueles que participaram de atividades políticas no período de 18 de setembro de 1946 até a data da sua promulgação e, que, portanto, a prescrição qüinqüenal, prevista no art. 1.º do Decreto n.º 20.910/32, teria se efetivado em 05/10/1993.

Inconformado o autor da demanda, ora recorrente, interpôs recurso de apelação. Em suas razões aduziu ser imprescritível seu direito à indenização, previsto no art. 37, §6.º, da Constituição. Sustentou que, ainda que fosse aplicável o entendimento inserto na r. Sentença atacada, o termo inicial da contagem do aludido prazo prescricional haveria de ser a data do ato de anistia (07/10/1998) e não a data da promulgação da Carta Maior. Aduziu, finalmente, que com a edição da Lei n.º 10.599/02, que regulamentou o art. 8.º do ADCT, o Estado reconheceu seu direito, devendo, neste caso, ser afastada a prescrição consoante o disposto pelo art. 172, inciso V, do revogado Código Civil (art. 202, inciso VI, do Código Civil vigente).
A Sétima Turma Especializada do E. Tribunal Regional Federal da 2.ª Região, por unanimidade de votos dos seus integrantes, negou provimento ao apelo interposto, em aresto que restou assim ementado:

"PROCESSUAL CIVIL. REGIME MILITAR. ATOS DE EXCEÇÃO. DANOS MATERIAIS E MORAIS. PRESCRIÇÃO.
1 - A pretensão de ressarcimento de danos materiais e morais advindos dos atos de exceção perpetrados durante o período do Regime Militar é atingida pela prescrição após o decurso de 5 anos contados da promulgação da Constituição de 1988.
2 - O advento da Lei n.º 10.599/02 não enseja um reconhecimento, por parte do Governo, do direito do autor, visto que este se deu com a própria promulgação da Constituição, sendo a citada lei editada apenas para regulamentar o art. 8.º do ADCT.
3 - Recurso improvido."

Em face do v. acórdão prolatado, o então apelante opôs embargos de declaração, por meio dos quais noticiou a Corte a quo a superveniência de fato novo, que a seu ver seria suficiente para refutar a tese da prescrição de sua pretensão, qual seja, a publicação no D.O.U. de 28/05/2004 do deferimento de seu pedido de anistia formulado em requerimento dirigido à Comissão de Anistia instituída junto ao Ministério da Justiça.

Após ter seus embargos desprovidos pela Corte de origem, o autor da demanda, ainda irresignado com o teor do aresto prolatado, interpôs o recurso especial que ora se apresenta, apontando a existência de ofensa aos arts. 8.º, § 3.º, do ADCT, da Constituição Federal de 1988; 14, da Lei n.º 9.140/95; a lei n.º 10.559/2002; bem como o art. 462 do Código de Processo Civil. Aduziu, ainda, em sua irresignação, a existência de dissídio pretoriano viabilizador do apelo nobre pela alínea "c" do permissivo constitucional, colacionando como paradigmas arestos desta Corte Superior e de outros tribunais, que esposam o entendimento de que "em casos em que se postula a defesa de direitos fundamentais, indenização por danos morais decorrentes de atos de tortura por motivo político ou de qualquer outra espécie, não há que prevalecer a imposição qüinqüenal prescritiva" (REsp n.º 379.414/PR, Rel. Min. José Delgado).
Em suas razões recursais aduz o recorrente, in verbis:

"(...) Em suas razões de decidir, o acórdão regional de fls. 119/124, assim fundamentou, in verbis: 'Concedida, porém, anistia aos perseguidos políticos pelo art. 8.º do ADCT, cumpria ao interessado requerer ao Estado, administrativamente ou judicialmente, a constituição de sua situação jurídica, no prazo de cinco anos da promulgação da Constituição, ou seja, até o dia 05/10/93'.

Ora, é explícita a violação ao § 3.º, do art. 8.º, do ADCT, da Constituição Federal, quando o r. acórdão recorrido atribui prazo para o requerimento do Recorrente com relação aos danos morais decorrentes das humilhações e torturas sofridas durante o período em que esteve preso nas dependências do Estado. Na verdade, a violação consiste em determinar prazo que o Legislador não previu.

Cumpre esclarecer ainda que, se não bastasse essa determinação temporal exigida no r. acórdão recorrido, este desconsiderou a Lei n.º 9.140/95, no seu art. 14, bem como a Lei n.º 10.599/02 que regulamentou o art. 8.º do ADCT.
(...)."

A União apresentou suas contra-razões ao apelo nobre (fls. 162/171), pugnando, preliminarmente, pela inadmissão do mesmo face à ausência de prequestionamento dos dispositivos apontados pelo recorrente como malferidos. No mérito, expendeu considerações a favor da tese esposado pelo aresto ora hostilizada, afirmando que a pretensão do autor, ora recorrente, encontra-se fulminada pelo instituto da prescrição qüinqüenal, consoante o disposto no art. 1.º do Decreto n.º 20.910/32. Neste ínterim, colacionou precedentes de outros tribunais que não guardam qualquer similitude com a questão versada nos autos (fls. 167/169).
Na origem, em exame prévio de admissibilidade, o presente recurso especial recebeu crivo positivo, ascendendo assim à esta Corte Superior.

É o relatório.

RECURSO ESPECIAL Nº 816.209 - RJ (2006/0022932-1)

EMENTA

PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. INDENIZAÇÃO. REPARAÇÃO DE DANOS MATERIAIS E MORAIS. REGIME MILITAR. PERSEGUIÇÃO, PRISÃO E TORTURA POR MOTIVOS POLÍTICOS. IMPRESCRITIBILIDADE. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. INAPLICABILIDADE DO ART. 1.º DO DECRETO N.º 20.910/32.

1. Recurso especial que versa acerca da delicada questão da prescritibilidade das ações tendentes a reparar a violação aos direitos humanos ou direitos fundamentais da pessoa humana, como sói ser a proteção da sua dignidade lesada pela tortura e prisão por delito de opinião durante o Regime Militar de exceção.

2. A indenização pretendida tem amparo constitucional no art. 8.º, § 3.º, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.

3. Deveras, a tortura e morte são os mais expressivos atentados à dignidade da pessoa humana, valor erigido como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil.

4. Sob esse ângulo, dispõe a Constituição Federal:

"Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
(...) III - a dignidade da pessoa humana;"
"Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes;
(...)III - ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante;"

5. Destarte, o egrégio STF assentou que:
"...o delito de tortura - por comportar formas múltiplas de execução - caracteriza- se pela inflição de tormentos e suplícios que exasperam, na dimensão física, moral ou psíquica em que se projetam os seus efeitos, o sofrimento da vítima por atos de desnecessária, abusiva e inaceitável crueldade. - A norma inscrita no art. 233 da Lei nº 8.069/90, ao definir o crime de tortura contra a criança e o adolescente, ajusta-se, com extrema fidelidade, ao princípio constitucional da tipicidade dos delitos (CF, art. 5º, XXXIX). A TORTURA COMO PRÁTICA INACEITÁVEL DE OFENSA À DIGNIDADE DA PESSOA. A simples referência normativa à tortura, constante da descrição típica consubstanciada no art. 233 do Estatuto da Criança e do Adolescente, exterioriza um universo conceitual impregnado de noções com que o senso comum e o sentimento de decência das pessoas identificam as condutas aviltantes que traduzem, na concreção de sua prática, o gesto ominoso de ofensa à dignidade da pessoa humana. A tortura constitui a negação arbitrária dos direitos humanos, pois reflete - enquanto prática ilegítima, imoral e abusiva - um inaceitável ensaio de atuação estatal tendente a asfixiar e, até mesmo, a suprimir a dignidade, a autonomia e a liberdade com que o indivíduo foi dotado, de maneira indisponível, pelo ordenamento positivo." (HC 70.389/SP, Rel. p. Acórdão Min. Celso de Mello, DJ 10/08/2001)

6. À luz das cláusulas pétreas constitucionais, é juridicamente sustentável assentar que a proteção da dignidade da pessoa humana perdura enquanto subsiste a República Federativa, posto seu fundamento.

7. Consectariamente, não há falar em prescrição da pretensão de se implementar um dos pilares da República, máxime porque a Constituição não estipulou lapso prescricional ao direito de agir, correspondente ao direito inalienável à dignidade.
Revista Consultor Jurídico, 22 de abril de 2007

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