22.5.07

Inadmissível prisão civil de depositário infiel

HABEAS CORPUS. DEPOSITÁRIO INFIEL. AÇÃO EXECUTIVA. APLICAÇÃO DO ART. 645, DO cdc. iNADMISSIBILIDADE DE PRISÃO CIVIL EM CONTRATO DE MÚTUO. INCIDÊNCIA DO ART. 7º. 7, DA CONVENÇÃO AMERICANA SOBRE DIREITOS HUMANOS (‘pACTO DE SAN JOSÉ DA COSTA RICA), DE 1969, e do art. 11, do Pacto internacional dos direitos civis e políticos, DE 1966, que vedaM a prisão por dívidas. HIERARQUIA DAS NORMAS INTERNACIONAIS. RECEPÇÃO pela ORDEM jurídica INTERNA. SUPRALEGALIDADE.
O advento da Emenda Constitucional n. 45/2004, prevendo a possibilidade de recepção de Tratados e Convenções sobre direitos humanos com status de norma constitucional, implica uma nova visão sobre a hierarquia das Convenções Internacionais ratificadas na ordem doméstica. Considerando a tendência contemporânea do constitucionalismo mundial e da globalização no sentido de dar especial atenção às normas de proteção aos direitos humanos, mostra-se mais adequada a tese de que com a ratificação no plano interno do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e a Convenção América sobre Direitos Humanos (‘Pacto de San José da Costa Rica’), ambos ratificados sem reservas pelo Brasil em 1992, não há mais base legal para aplicação da parte final do art. 5º, inciso LXVII, da Constituição, ou seja, para a prisão civil do depositário infiel, pois o caráter especial desses diplomas internacionais sobre direitos humanos lhes reserva lugar específico no ordenamento jurídico, estando abaixo da Constituição, porém acima da legislação interna. Destarte, o status normativo supralegal dos Tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil torna inaplicável a legislação infraconstitucional com ele conflitante, seja ela anterior ou posterior ao ato de ratificação, e implica que prevalecem ditas Convenções internacionais frente à legislação infraconstitucional, inclusive à regra disposta no art. 652 do Código Civil, que cuida da prisão civil do depositário infiel. De qualquer maneira, o legislador constitucional não fica impedido de submeter o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica, além de outros Tratados de direitos humanos, ao procedimento especial de aprovação previsto no art. 5º, § 3º, da Constituição, tal como definido pela EC n° 45/2004, conferindo-lhes, então, status de emenda constitucional.
Recentíssima orientação decorrente de reviravolta jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal que a Câmara passa a adotar doravante.
ORDEM CONCEDIDA. UNÂNIME.

Habeas Corpus

Nona Câmara Cível
Nº 70018121186

Comarca de São Francisco de Assis
GASPAR GONCALVES PAINES

IMPETRANTE/PACIENTE
JUIZ DE DIREITO DA COMARCA DE SAO FRANCISCO DE ASSIS

COATOR
ANDRE BASTIANI NARESSI

INTERESSADO

ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos.
Acordam os Desembargadores integrantes da Nona Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado, à unanimidade, em conceder a ordem de habeas corpus preventivo.
Custas na forma da lei.
Participaram do julgamento, além do signatário, as eminentes Senhoras Des.ª Iris Helena Medeiros Nogueira (Presidente) e Des.ª Marilene Bonzanini Bernardi.
Porto Alegre, 28 de fevereiro de 2007.


DES. ODONE SANGUINÉ,
Relator.

RELATÓRIO
Des. Odone Sanguiné (RELATOR)

1. GASPAR GONÇALVES PAINES impetrou o presente habeas corpus preventivo em seu favor, insurgindo-se diante de determinação, feita pela autoridade apontada como coatora, JUIZ DE DIREITO DA VARA JUDICIAL DE SÃO FRANCISCO DE ASSIS, de entrega dos animais faltantes arrematados em leilão ou do depósito equivalente em dinheiro, em 48 horas, sob pena de expedição de mandado de prisão civil por depositário infiel (fl. 17).

2. Narra o apelante que os animais dados em garantia foram arrematados em 04/09/2006. Contudo, sendo a ação datada de novembro de 2003, relata que peticionou nos autos em virtude de impossibilidade temporária de apresentar os animais, considerando que os mesmos perderam as características quando do oferecimento à penhora – ocorrida em 22/04/2005 – diante do transcorrer do tempo.

Observa que os arrematantes recolheram parte dos animais da área de pastoreio, não tendo ocorrido a pesagem dos mesmos à vista do capataz, além de não ter sido acostado nenhum comprovante de que tal pesagem houvesse sido efetuada logo após o carregamento.

Sustenta que, em que pese terem tais considerações sido argüidas nos autos, foi proferido despacho determinando a apresentação dos animais faltantes ou o depósito do equivalente em dinheiro, sob pena de prisão civil por depositário infiel.

Relata que os arrematantes peticionaram requerendo a apresentação dos semoventes faltantes por peso, sobrevindo despacho do magistrado reiterando a determinação de apresentação dos animais faltantes ou o pagamento do equivalente em dinheiro, sob pena de prisão civil por depositário infiel.

Frisa que: (a) a determinação toma por base a indicação de peso fornecida apenas pelos arrematantes; (b) os animais não foram pesados à vista do executado ou do seu capataz; (c) a garantia ofertada nos autos foi de animais por cabeça e não por peso.

Aduz que o despacho reveste-se de dubiedade, pois determinada ao executado, na primeira parte, a entrega dos animais ou o depósito equivalente em dinheiro, com base em quilos apresentados pelo arrematante, para, na segunda parte, intimar os arrematantes a juntar calculo da diferença pelo recebimento de animais de valor inferior.

Invoca o Tratado da Costa Rica, do qual o Brasil é signatário, que impossibilita a prisão civil por dívidas, salvo a de devedor de alimentos.

Por fim, requer o recebimento do Habeas Corpus, lhe sendo deferido salvo conduto, nos termos do art. 660, § 4º, do CPP.

3. Recebido em regime de plantão, em 19 de dezembro de 2006 (fls. 21/22), foi deferido o pedido liminar de expedição de salvo conduto.

4. Distribuído a esta relatoria, foi determinada a notificação da autoridade coatora para prestar as informações que entendesse necessárias, bem como vista ao Ministério Público.

5. Prestadas as informações pelo magistrado (fls. 55/58).

6. O ilustre Procurador de Justiça opinou pela concessão da ordem (fls. 60/63).

É o relatório.
VOTOS
Des. Odone Sanguiné (RELATOR)
Eminentes Colegas:

7. Inicialmente, considero cabível a ação de ‘habeas corpus’ para verificar eventual ilegalidade ou abuso de poder na hipótese de decreto que determina prisão de depositário infiel.

Como já decidiu o Supremo Tribunal Federal, “o âmbito normativo da disciplina do habeas corpus pelo Código de Processo Penal e legislação complementar compreende toda e qualquer impetração do remédio constitucional, independentemente de ser penal ou não a questão de fundo a deslindar na verificação da legalidade ou não do constrangimento ventilado à liberdade de locomoção do paciente: desse modo, pouco importa que a prisão do devedor de alimentos ou do depositário infiel efetivamente não constitua sanção penal, mas instrumento de compulsão ao adimplemento de obrigações civis: o habeas corpus contra a efetivação ou ameaça de prisão civil é processo regulado pela lei processual penal (AI-AgR 423277/SC, 1ª T., STF, relator Min. Sepúlveda Pertence, j. em 18/02/03, DJ 11/04/03, p.33).

8. Em segundo lugar, ressalto que, no caso em tela, o paciente fora nomeado depositário de bem penhorado em execução de sentença movida por André Bastiani Naressi – feito nº 125/104.0001789-4, tramitando perante a Comarca de São Francisco de Assis – , tendo os animais sido arrematados por Fernando Giuliane de Davi e Carlos Renam Pallaouro. Os arrematantes compareceram aos autos referindo que, ao chegarem à fazenda para tomar posse dos animais, foram surpreendidos pelo Capataz, Sr. José Medeiros, que teria informado sobre a inexistência dos animais, motivo pelo qual teriam recebido semoventes de outra categoria, com peso inferior àqueles arrematados, postulando, dessa forma, a intimação do executado para complementar o faltante relativamente ao peso dos animais, sob pena de prisão. Foi intimado o ora paciente em 15/12/2006 (fl. 20), para que entregasse os animais faltantes ou depositasse o equivalente em dinheiro, sob pena de expedição de mandado de prisão por depositário infiel.

9. Após a vigência da Constituição Federal de 1988 e, notadamente, após a ratificação pelo Brasil, em 1992, sem qualquer reserva, do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, de 1966, e da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, de 1969 – o denominado ‘Pacto de San José da Costa Rica’ –, cujos artigos 11 e 7º. 7, respectivamente, vedam a prisão por dívidas, deflagrou-se na doutrina e na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal uma intensa (re) discussão sobre a legitimidade da prisão civil do depositário infiel.

A jurisprudência do STF sobre essa questão havia se firmado no sentido de que “o depositário judicial assume o múnus publico de órgão auxiliar da Justiça, pois a ele é confiada a guarda dos bens que garantirão a efetividade da decisão a ser proferida no processo judicial. É o vínculo funcional entre o Juízo e o depositário que permite, verificada a infidelidade, a decretação da prisão deste último. Não se trata, portanto, de hipótese de prisão contratual. É esta a natureza não-contratual do vínculo que faz com que a medida de constrição de liberdade individual se enquadre na ressalva constitucional do inciso LXVII do art. 5º da Constituição da República” (HC 84484/SP; 1ª T., STF, relator Min. Carlos Britto, j. em 30/11/2004; DJ 07/10/05, p.75).

Outrossim, sob diverso enfoque, o STF, por seu Plenário (HC 72.131), também firmara o entendimento de que, em face da Carta Magna de 1988, persiste a constitucionalidade da prisão civil do depositário infiel em se tratando de alienação fiduciária em garantia, bem como de que o Pacto de São José da Costa Rica, além de não poder contrapor-se à permissão do artigo 5º, LXVII, da mesma Constituição, não derrogou, por ser norma infraconstitucional geral, as normas infraconstitucionais especiais sobre prisão civil do depositário infiel. - Esse entendimento voltou a ser reafirmado, também por decisão do Plenário, quando do julgamento do RE 206.482 (RE 344585 / RS, 1ª T., STF, rel. Min. Moreira Alves, j. 25/06/02, DJ 13/0905, p.85).

10. Não obstante, recentemente, a legitimidade da prisão civil do depositário infiel – ressalvada a hipótese excepcional do devedor de alimentos – está sendo objeto de revisão no Plenário do Supremo Tribunal Federal (Recursos Extraordinários n 466343 e 349703), cabendo salientar que, apesar de não ter sido ainda concluído o julgamento, em virtude de ter sido interrompido por um pedido de vista do Min. Celso de Mello, sete ministros da Corte já votaram no sentido de reconhecer a inconstitucionalidade da prisão civil do alienante fiduciário e do depositário infiel, seguindo o voto do relator Min. Cezar Peluso, circunstância que acena para a confirmação dessa reviravolta jurisprudencial, em particular porque o Min. Sepúlveda Pertence já defendera anteriormente em julgamento anterior essa nova orientação. Em conseqüência, nos últimos julgados, o STF vem deferindo medidas liminares contra prisão civil de depositário infiel (HC 90354, rel. Min. Gilmar Mendes; HC 90172, rel. Min. Gilmar Mendes).

11. Reproduzo excerto do voto-vista prolatado no RE 349703 e voto vogal no RE 466343, pelo Min. Gilmar Mendes, conforme o qual, a premente necessidade de se dar efetividade à proteção dos direitos humanos nos planos interno e internacional torna imperiosa uma mudança de posição quanto ao papel dos Tratados internacionais sobre direitos na ordem jurídica nacional.

É necessário assumir uma postura jurisdicional mais adequada às realidades emergentes em âmbitos supranacionais, voltadas primordialmente à proteção do ser humano.

Como enfatiza Cançado Trindade, ‘a tendência constitucional contemporânea de dispensar um tratamento especial aos Tratados de direitos humanos é, pois, sintomática de uma escala de valores na qual o ser humano passa a ocupar posição central’.

Portanto, diante do inequívoco caráter especial dos Tratados internacionais que cuidam da proteção dos direitos humanos, não é difícil entender que a sua internalização no ordenamento jurídico, por meio do procedimento de ratificação previsto na Constituição, tem o condão de paralisar a eficácia jurídica de toda e qualquer disciplina normativa infraconstitucional com ela conflitante.

Nesse sentido, é possível concluir que, diante da supremacia da Constituição sobre os atos normativos internacionais, a previsão constitucional da prisão civil do depositário infiel (art. 5º, inciso LXVII) não foi revogada pela ratificação do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 11) e da Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica (art. 7º, 7), mas deixou de ter aplicabilidade diante do efeito paralisante desses Tratados em relação à legislação infraconstitucional que disciplina a matéria, incluídos o art. 1.287 do Código Civil de 1916 e o Decreto- Lei n° 911, de 1º de outubro de 1969.

Tendo em vista o caráter supralegal desses diplomas normativos internacionais, a legislação infraconstitucional posterior que com eles seja conflitante também tem sua eficácia paralisada. É o que ocorre, por exemplo, com o art. 652 do Novo Código Civil (Lei n° 10.406/2002), que reproduz disposição idêntica ao art. 1.287 do Código Civil de 1916.

12. Em conclusão, desde a ratificação pelo Brasil, no ano de 1992, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 11) e da Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica (art. 7º, 7), não há mais base legal para aplicação da parte final do art. 5º, inciso LXVII, da Constituição, ou seja, para a prisão civil do depositário infiel, pois o caráter especial desses diplomas internacionais sobre direitos humanos lhes reserva lugar específico no ordenamento jurídico, estando abaixo da Constituição, porém acima da legislação interna. O status normativo supralegal dos Tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil, dessa forma, torna inaplicável a legislação infraconstitucional com ele conflitante, seja ela anterior ou posterior ao ato de ratificação.

De qualquer forma, o legislador constitucional não fica impedido de submeter o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica, além de outros Tratados de direitos humanos, ao procedimento especial de aprovação previsto no art. 5º, § 3º, da Constituição, tal como definido pela EC n° 45/2004, conferindo-lhes status de emenda constitucional.

Como arremata o Min. Gilmar Mendes, a evolução jurisprudencial sempre foi uma marca de qualquer jurisdição de perfil constitucional. A afirmação da mutação constitucional não implica o reconhecimento, por parte da Corte, de erro ou equívoco interpretativo do texto constitucional em julgados pretéritos. Ela reconhece e reafirma, ao contrário, a necessidade da contínua e paulatina adaptação dos sentidos possíveis da letra da Constituição aos câmbios observados numa sociedade que, como a atual, está marcada pela complexidade e pelo pluralismo.

A prisão civil do depositário infiel não mais se compatibiliza com os valores supremos assegurados pelo Estado Constitucional, que não está mais voltado apenas para sim mesmo, mas compartilha com as demais entidades soberanas, em contextos internacionais e supranacionais, o dever de efetiva proteção dos direitos humanos.

Portanto, somente remanesce legítima a prisão civil por dívida alimentícia, de modo que doravante é inadmissível a prisão civil do depositário infiel, qualquer que seja a modalidade.

Outrossim, no caso em tela, como bem menciona o ilustre Procurador de Justiça Arnaldo Buede Sleimon (fl. 62):

“(...) Sendo a penhora realizada em bem fungível, é de serem aceitos bens similares como forma de pagamento, se não puderem ser entregues nas mesmas condições em que foram penhorados.

Incide nessa hipótese, a norma do art. 645, do Código Civil que assim dispõe:

‘O depósito de coisas fungíveis, em que o depositário se obrigue a restituir objetos do mesmo gênero, qualidade e quantidade, regularmentar-se-á pelo disposto acerca do mútuo.’

Assim, o contrato de mútuo não admite prisão civil por dívida, por ser considerada ação de depósito imprópria, se o devedor obrigou-se a entregar bens fungíveis.

Por oportuno, cita-se os precedentes colhidos:

HABEAS CORPUS. PRISÃO CIVIL. AÇÃO DE DEPÓSITO. BENS FUNGÍVEIS. Descabe o constrangimento pessoal, por depositário infiel, em casos de depósito de bens fungíveis, disciplina que se resolve pelas regras do mútuo, à luz do art. 1.280, do CCB de 1916 e 645 do NCCB. Ademais, há que se ter presente a orientação emanada pela EC Nº 45: Pacto de San José da Costa Rica. HABEAS CORPUS CONCEDIDO. (Habeas Corpus Nº 70015197619, Décima Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Elaine Harzheim Macedo, Julgado em 29/06/2006)


HÁBEAS CORPUS. CONTRATOS AGRÁRIOS. DEPOSITÁRIO INFIEL. PRISÃO CIVIL. CRÉDITO. DEPÓSITO DE BENS FUNGÍVEIS EQUIPARA-SE AO MÚTUO. INADMISSIBILIDADE DA PRISÃO CIVIL. PRECEDENTES STJ E TJRS. Nos termos do art. 645 do CC, o depósito de coisas fungíveis, em que o depositário se obrigue a restituir objetos do mesmo gênero, qualidade e quantidade, regular-se-á pelo disposto acerca do mútuo. Diante disso, percebe-se que está caracterizado depósito denominado irregular, o qual não é passível de prisão civil, conforme a orientação jurisprudencial do STJ. ORDEM CONCEDIDA. UNÂNIME. (Habeas Corpus Nº 70013072491, Nona Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Odone Sanguiné, Julgado em 21/12/2005) (...).”

Dispositivo
Destarte, voto pela concessão da ordem de habeas corpus preventivo, tornando definitiva a liminar concedida.


Des.ª Iris Helena Medeiros Nogueira (PRESIDENTE)
Já adianto que estou em acompanhar o eminente Relator, para conceder a ordem de habeas corpus preventivo.
Apenas esclareço que, ao contrário do entendimento esposado pelo Colega, integro a corrente jurisprudencial que admite, em regra, a prisão do depositário infiel, uma vez que há fundamento constitucional e na legislação esparsa para tanto.
Assim fundamentei o voto divergente que proferi no habeas corpus n° 70016752206, verbis:

“Com efeito, o artigo 5º, inciso LXVIII, da Constituição Federal, preceitua que o habeas corpus será concedido sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder.
O Código de Processo Penal, em seu artigo 647, traz as hipóteses de cabimento desta medida, no seguinte sentido: “Dar-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar na iminência de sofrer violência ou coação ilegal na sua liberdade de ir e vir, salvo nos casos de punição disciplinar”.
Outrossim, nos incisos do artigo 648 do Código de Processo Penal encontramos parâmetros para definir que se deve entender por ordem ilegal:
‘I - quando não houver justa causa;
II - quando alguém estiver preso por mais tempo do que determina a lei;
III - quando quem ordenar a coação não tiver competência para fazê-lo;
IV - quando houver cessado o motivo que autorizou a coação;
V - quando não for alguém admitido a prestar fiança, nos casos em que a lei a autoriza;
VI - quando o processo for manifestamente nulo;
VII - quando extinta a punibilidade.’
Ademais, a prisão do depositário infiel encontra respaldo na Constituição Federal, conforme se extrai do disposto no inciso LXVII do artigo 5°, verbis: “não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel”. Existe, também, previsão legal expressa no Código de Processo Civil que dispõe, em seu artigo 904, caput e parágrafo único, que “julgada procedente a ação, ordenará o juiz a expedição de mandado para a entrega, em 24 (vinte e quatro) horas, da coisa ou do equivalente em dinheiro; não sendo cumprido o mandado, o juiz decretará a prisão do depositário infiel.”
Em sendo assim, não há que se cogitar a existência de ilegalidade ou abuso de poder.”

Pois bem, em que pese tal posicionamento a priori, este caso concreto possui a peculiaridade de os bens depositados tratarem-se de bens fungíveis, situação que é equiparada ao mútuo, para o qual é inadmissível o decreto de prisão civil.
Adoto, no ponto, a fundamentação utilizada pelo eminente Desembargador Odone Sanguiné quando do julgamento do habeas corpus nº 70013072491, julgado por esta Câmara no dia 21 de dezembro de 2005:

(...) nos termos do art. 645 do CC, o depósito de coisas fungíveis, em que o depositário se obrigue a restituir objetos do mesmo gênero, qualidade e quantidade, regular-se-á pelo disposto acerca do mútuo. Diante disso, percebe-se que está caracterizado depósito denominado irregular, o qual não é passível de prisão civil, conforme a orientação jurisprudencial do STJ.
Em que pese o Egrégio STF admitir a prisão civil do depositário infiel quando o depósito trate de coisa fungível (RTJ 163/696), o STJ entende que “tratando-se de bens fungíveis e consumíveis aplicam-se ao depósito as regras do mútuo, pelo que incabível a ação de depósito com pedido de prisão civil do devedor que somente é admissível nos depósitos de guarda e não nos depósitos em garantia de crédito” (HC nº 9.142/ RJ, relator: Min. Waldemar Zveiter). Outrossim, o Egrégio Superior Tribunal também sustenta ser a “prisão civil não essencial à ação de depósito e somente admissível nos depósitos para a guarda e não nos depósitos para garantia de crédito, sob pena de retrocedermos aos tempos prístinos da prisão por dívidas” (STJ-4ª Turma, REsp 12507-0-RS, rel. Min. Athos Carneiro, j. 1.12.92). Destaco, não obstante, outro aresto no mesmo sentido:
“HABEAS CORPUS. PRISÃO CIVIL. AÇÃO DE DEPÓSITO. TRÂNSITO EM JULGADO. NÃO CONSTITUI ÓBICE. BENS FUNGÍVEIS. DEPOSITÁRIO INFIEL. INCABÍVEL AÇÃO DE DEPÓSITO. - O trânsito em julgado não impede concessão de habeas corpus, quando a prisão é ilegal. - O depósito de bens fungíveis e consumíveis equipara-se ao mútuo. Não se admite prisão do depositário de tais bens” (HC 34432/TO, TERCEIRA TURMA, STJ, REL. MINISTRO HUMBERTO GOMES DE BARROS, JULGADO EM 25/05/2004).

Essa aliás, é a orientação desta Colenda Corte:


HABEAS CORPUS. DEPOSITÁRIO INFIEL. PRISÃO CIVIL. DEPÓSITO DE BENS FUNGÍVEIS. O DEPÓSITO DE BENS FUNGÍVEIS EQUIPARA-SE AO MÚTUO, PARA O QUAL É INADMISSÍVEL O DECRETO DA PRISÃO CIVIL. PRECEDENTES JURISPRUDENCIAIS. LIMINAR CONFIRMADA. ORDEM CONCEDIDA. (Habeas Corpus Nº 70011473592, Décima Sexta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Ergio Roque Menine, Julgado em 22/06/2005)

“HABEAS CORPUS. CONTRATO DE DEPÓSITO NÃO CONFIGURADO NOS TERMOS PRETENDIDOS PELO AUTOR. PRISÃO INCABÍVEL EM FACE DA NATUREZA DO BEM FUNGÍVEL ENVOLVIDO. HABEAS CORPUS DEFERIDO” (HABEAS CORPUS Nº 70006337927, DÉCIMA QUARTA CÂMARA CÍVEL, TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RS, RELATOR: ROGERIO GESTA LEAL, JULGADO EM 12/06/2003).

“HABEAS CORPUS. PRISÃO CIVIL. AÇÃO DE DEPÓSITO. BENS FUNGÍVEIS. DESCABE O CONSTRANGIMENTO PESSOAL, POR DEPOSITÁRIO INFIEL, EM CASOS DE DEPÓSITO DE BENS FUNGÍVEIS, DISCIPLINA QUE SE RESOLVE PELAS REGRAS DO MÚTUO, À LUZ DO ART. 1.280, DO CCB. HABEAS CORPUS CONCEDIDO” (HABEAS CORPUS Nº 70003149044, DÉCIMA SÉTIMA CÂMARA CÍVEL, TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RS, RELATOR: ELAINE HARZHEIM MACEDO, JULGADO EM 16/10/2001)
(...)


Feitos tais esclarecimentos, acompanho o Relator e voto pela concessão da ordem, tornando definitiva a liminar de salvo conduto anteriormente deferida.


Des.ª Marilene Bonzanini Bernardi - De acordo com os fundamentos explanados pela eminente Presidente.

DES.ª IRIS HELENA MEDEIROS NOGUEIRA - Presidente - Habeas Corpus nº 70018121186, Comarca de São Francisco de Assis: "ORDEM CONCEDIDA. UNÂNIME."


Fonte: Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul

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