22.5.07

DIREITO FUNERÁRIO. CEMITÉRIO PÚBLICO. DUPLA CONCESSÃO. DISPUTA ENTRE DUAS IRMÃS, UMA QUE AINDA VIVE, E OUTRA QUE JÁ MORREU.

APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO FUNERÁRIO. CEMITÉRIO PÚBLICO. DUPLA CONCESSÃO (VENDA) DO MESMO CARNEIRO (JAZIGO). ALVARÁS DE CEMITÉRIO. DISPUTA ENTRE DUAS IRMÃS, UMA QUE AINDA VIVE, E OUTRA QUE JÁ MORREU (ESPÓLIO). JAZIGO DOS RESPECTIVOS PAIS. PEDIDO DE ANULAÇÃO DO ALVARÁ CONCEDIDO À IRMÃ PRE-FALECIDA, COM REMOÇÃO DOS RESTOS MORTAIS.
1. Reexame necessário conhecido de ofício, eis não haver qualquer excludente prevista no art. 475, §§ 2º e 3º, do CPC.
2. Se não há prova de que uma irmã, pré-falecida, agiu com dolo na obtenção de Alvará de Cemitério, tendo por objeto carneiro (jazigo), o mesmo onde já estavam seus pais, em prejuízo, mais tarde constatado, de outra irmã, que de igual modo havia muito antes obtido igual alvará, não há como anular o segundo, concedido àquela, com a remoção dos restos mortais. O direito de preferência, baseado no princípio prior in tempore, potior in jus (primeiro no tempo, mais forte no direito), decorrente da anterioridade da celebração, uma vez não exercido até o momento da inumação, se transfere para a anterioridade da ocupação. Na bizarra disputa pelo lugar, só resta garanti-lo a quem nele chegou antes, e quieta non movere. Fica tudo como a própria morte: consumatum est. Ademais, segundo os alvarás não se referiam ao mesmo espaço, e sim diversos, concluindo-se, também por isso, que a irmã pré-falecida foi induzida em erro. Dessarte, sobeja à prejudicada indenização contra o Município face ao erro cometido.
3. À unanimidade, provida a 2ª apelação (do Município), restando prejudicados a 1ª (da autora) e o recurso adesivo (do espólio réu), confirmando-se no mais a sentença em reexame necessário conhecido de ofício.

Apelação Cível

Primeira Câmara Cível
Nº 70010320521

Comarca de Passo Fundo
LORY SALETE KUNS RODRIGUES

APELANTE/RECORRIDO ADESIVO
MUNICIPIO DE PASSO FUNDO

APELANTE/APELADO
ESPOLIO DE MARIA JESUS MUCCINI

RECORRENTE ADESIVO/APELADO

ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos.
Acordam os Desembargadores integrantes da Primeira Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado, à unanimidade, em dar provimento ao 2º apelo (do Município), restando prejudicados o 1º (da autora) e o recurso adesivo (do espólio réu), confirmando-se no mais a sentença em reexame necessário conhecido de ofício.
Custas na forma da lei.
Participaram do julgamento, além do signatário, os eminentes Senhores Des. Henrique Osvaldo Poeta Roenick (Presidente) e Des. Carlos Roberto Lofego Caníbal.
Porto Alegre, 25 de abril de 2007.


DES. IRINEU MARIANI,
Relator.

RELATÓRIO
Des. Irineu Mariani (RELATOR)
A princípio adoto o relatório elaborado pela Drª Maria Loreni Cargnelutti, eminente Procuradora de Justiça (fls. 108-13): Trata a espécie de ação anulatória movida por LORY SALETE KUNS RODRIGUES contra o MUNICÍPIO DE PASSO FUNDO e o ESPÓLIO DE MARIA JESUS UCCINI, objetivando, “(...) uma vez declarada a anulabilidade do alvará em questão, seja também condenado o espólio de Maria Jesus Muccini, representado por seu filho Valcir Augusto Muccini, a retirar os restos mortais de sua falecida mãe do terreno em questão no prazo de 90 duas a contar do transito (sic) em julgado da sentença sob pena de pagar uma multa diária de R$100,00 (cem reais) até o efetivo cumprimento do julgado. (...)” (sic, citação fl. 3).
A autora relatou que, em 6.2.97, adquiriu um terreno no cemitério Municipal dos Ribeiros, onde sua mãe e seu pai – falecidos, respectivamente, em 21.6.71 e 2.6.77 – já haviam sido sepultados, pagando a importância de R$42,00 (quarenta e dois reais) ao Município de Passo Fundo pelo alvará emitido para concessão do local. Disse que, na data de 12.11.01, sua irmã, Maria Jesus Muccini, sabendo estar acometida de grave doença e pretendendo ser sepultada junto de seus pais, dirigiu-se à Prefeitura Municipal na intenção de adquirir o mesmo terreno, fazendo-o através do pagamento da importância de R$52,22 (cinqüenta e dois reais e vinte e dois centavos). Referiu que, com o falecimento de sua irmã, em 22.6.02, seus familiares, na posse do segundo alvará, sepultaram-na no túmulo de seus pais, “(...) cuja propriedade pertence exclusivamente à autora. (...)” (sic, citação fls. 3). Pugnou desse modo, pela anulação do alvará nº 10.828/01, concedida à Maria Jesus Muccini, “ (...) porquanto se trata de um terreno que já havia sido vendido há mais de quatro anos através do alvará nº 9455/97. (...)” (sic, citação fl. 3). finaliza requerendo a total procedência da ação (fl. 2/3).
O feito teve regular andamento com apresentação de contestações (fls. 25/29 e 34/37), réplica a essas peças (fls. 45/46) e manifestação do Ministério Público, no sentido de não serem acolhidas as “(...) preliminares suscitadas e, no mérito, pela parcial procedência da ação, anulando-se o alvará nº 9.455/97, porém mantendo-se os restos mortais de Maria Jesus Muccini no local do sepultamento nos termos acima fundamentados. (...)” (sic, fls. 48/54), citação nessa última).
A seguir, sobreveio a sentença ora hostilizada, que entendeu de julgar parcialmente procedente a demanda, sendo que o dispositivo assim declinou: “(...) Isso posto, rejeito as prefaciais. No mérito, julgo o pedido, parcialmente, procedente. Anulo o Alvará n.º 10.838/01, expedido em favor de MARIA JESUS MUCCINI (fl. 9), permanecendo no local os restos mortais desta. (...)” (sic, fls. 61/62); citação nessa última).
Apela a autora, pois irresignada com a determinação no sentido de serem mantidos os restos mortais de Maria Jesus Muccini no local, requerendo que os mesmos sejam removidos para junto de seu marido, Henrique Muccini, que se encontra sepultado no mesmo cemitério “(...) ou para onde resolverem, o importante é que desocupem a vaga da autora. (...)” (sic, citação fl. 68). Finaliza requerendo o integral provimento do recurso (fls. 65/68).
O Município de Passo Fundo apresentou contra-razões (fls. 74/76) e, igualmente desconforme, apela da sentença, sustentando que o alvará emitido em favor de Maria Jesus Muccini, que restou anulado, deve ser mantido. Disse que a solução dada certamente dará ensejo a outras demandas, já que a autora não terá o uso exclusivo do local – bem público de uso privativo –, conforme garantido pelo Alvará. Não será, de fato, o que o direito está a solucionar. Refere que os atos administrativos, embora apresentem aparente nulidade, devem ser mantidos, “(...) quando o interesse público suplantar a falha que o acometeu, no caso a memória dos mortos (...)” (sic, citação fl. 79). Finaliza requerendo o integral provimento do recurso (fls. 77/80).
O Espólio de Maria Jesus Muccini apela, adesivamente, sustentando que os documentos juntados aos autos demonstram que a autora adquiriu a carneira nº 801, enquanto a carneira nº 1586 pertence ao espólio, tratando-se, pois, de “gavetas” ou “espaços físicos” diferentes, que se encontram situados no mesmo terreno, fato que obsta a pretensão da autora em anular compra e venda de terreno que não lhe pertence. Ressalta que uma possível remoção seria difícil e dolorosa, já que Maria Jesus Muccini faleceu em 26.6.02, acometida de câncer generalizado. sinala que a decisão não soluciona o litígio, tendo em vista ter concedido uso exclusivo à autora, mas sem a retirada dos restos mortais da irmã. Aduz que o interesse público, que diz com o respeito à memória dos mortos, está acima dos interesses particulares aqui postos. Finaliza requerendo o integral provimento do recurso, de modo a ser reconhecida a validade do Alvará nº 10.838/01, concedido à Maria Jesus Muccini (fls. 82/86).
O Espólio de Maria Jesus Muccini apresentou contraminuta ao apelo interposto pela autora (fls. 89/93) e o Município de Passo Fundo manifestou-se no sentido de não haver interesse em contra-arrazoar o recurso adesivo (fl. 101).
Sem as contra-razões da autora (fl. 103) e com manifestação do Ministério Público, no sentido do conhecimento das irresignações (fls. 104/105), vieram os autos com vista para parecer.
Em seguimento, opinou pelo desprovimento do recurso da autora e provimento do recurso adesivo e do recurso do Município (fls. 113-18).
Acrescento que a eg. 3ª Câmara Cível declinou da competência em 9-6-05 (fls. 122-32).
É o relatório.
VOTOS
Des. Irineu Mariani (RELATOR)
Inicialmente, conheço de ofício do reexame necessário, eis não haver qualquer excludente prevista nos § 2º e 3º do art. 475 do CPC.
No mais, o caso é bastante singular. Envolve disputa entre duas irmãs, a respeito do mesmo espaço no Cemitério, junto aos respectivos pais, já falecidos.
Tendo em conta que o Município vendeu duas vezes a concessão do mesmo espaço, e tendo em conta que uma das irmãs, Maria Jesus Muccini, que comprou depois, mas faleceu antes, lá foi sepultada, a outra, Lory Salete Kuns Rodrigues, que comprou antes, ajuizou pedido de anulação da segunda venda feita pelo Município, com decorrente remoção dos restos mortais de Maria Jesus, a fim de que o local fique disponível para recebê-la quando de seu falecimento.
Eminentes colegas, penso necessárias inicialmente algumas considerações, registrando a existência de excelente obra do jurista Adriano Farias da Silva, em dois volumes, intitulada Tratado de Direito Funerário, Ed. Método. O Direito Funerário é um ramo do direito público, e assim já deliberou esta Câmara na ap. cív. 70 002 563 419, da qual fui relator.
Com efeito, constou no art. 72, § 5º, da CF de 1891, o seguinte: Os cemitérios terão caráter secular e serão administrados pela autoridade municipal, ficando livre a todos os cultos religiosos a prática dos respectivos ritos em relação a seus crentes, desde que não ofendam a moral pública e as leis. O vocábulo secular não tem sentido de século, ou que vive no século, contrastando com aquele que vive na clausura, isso no Direito Canônico, mas o sentido do Direito Civil, como explica De Plácido e Silva, em seu Vocabulário Jurídico, significando aquilo que pertencia às coisas que originariamente estavam sob o domínio da Igreja e que passaram à administração das autoridades civis.
O art. 113, nº 7, da CF de 1934, manteve a mesma redação, acrescendo a possibilidade de as associações religiosas manterem cemitérios particulares, sujeitos à fiscalização pública, sendo-lhes defeso recusar sepultamento onde não houver cemitério secular.
O art. 122, nº 5, da CF de 1937, teve uma redação enxuta, dizendo apenas que os cemitérios terão caráter secular e serão administrados pela autoridade municipal. Finalmente, a CF de 1946, no art. 141, § 10, reeditou o texto de 1937, sendo que o tema, atendendo à crítica doutrinária, saiu do texto magno com a CF de 1967, não porém do interesse do Município, abrangido pela expressão peculiar interesse usada pela Carta anterior (art. 15, II) e interesse local pela atual (art. 30, I). Nesse sentido, doutrina de José Cretella Júnior: Assim, mesmo sem a chancela constitucional, como ocorre agora, é da competência do Município, já que se inscreve dentre as matérias de seu peculiar interesse, a administração dos cemitérios e o exercício do respectivo poder de polícia (Direito Municipal, 1975, p. 243).
Importante observar que as diversas Constituições, enquanto se ocuparam com a matéria, nunca afirmaram que os cemitérios tinham caráter secular público, mas apenas secular, podendo, por decorrência, os serviços ser prestados tanto pelo próprio poder público, e normalmente existe o cemitério público, quanto por particulares, como também é comum existir, surgindo daí o chamado Cemitério-Parque.
O Direito Funerário, como se vê, tanto envolve a regulação dos atos relativos ao sepultamento ou à cremação, respectivos locais e entidades que exercem a atividade, quanto a regulação dos serviços funerários em si, que vêm a ser os atos preparatórios, bem assim das entidades que exercem a atividade. E tanto num quanto noutro aspecto, faz-se presente uma questão de saúde pública que diz com interesses do sítio, pois, evidentemente, as normas de salubridade num pequeno centro urbano não precisam ser as mesmas de grande centro, onde os eventos ocorrem em grande número todos os dias.
E diga-se que, relativamente aos serviços funerários não têm sido raros os casos, seja no que tange à distância mínima das Casas Funerárias em relação aos hospitais, seja no que tange ao plantão de tais serviços, seja no que tange à habilitação de tais Casas quando sediadas num Município para prestá-los noutro, pois é evidente que as normas, como disse, numa pequena cidade não precisam ser as mesmas de um grande centro urbano, onde os eventos ocorrem em grande número todos os dias.
Por fim, concluindo essas considerações iniciais, são oportunos os ensinamentos de Hely Lopes Meirelles, transcritos na contestação do Município (fl. 35): Os terrenos dos cemitérios são bens de domínio público de uso especial, razão pela qual não podem ser alienados, mas simplesmente concedidos aos particulares para as sepulturas, na forma do respectivo regulamento local (Direito Municipal Brasileiro, 12ª ed., p. 428).
Passo agora ao voto propriamente dito.
Como disse no início, o Município vendeu duas vezes o mesmo espaço para duas irmãs, Maria Jesus Muccini, que comprou depois, mas faleceu antes, lá foi sepultada, e Lory Salete Kuns Rodrigues, que comprou antes, e que por isso quer seja anulada da segunda venda, com decorrente remoção dos restos mortais de sua irmã Maria Jesus, o que é veramente constrangedor, reconheçamos.
Pois bem.
O Município, em 19-2-97, expediu em favor da autora Lory, o Alvará de Cemitério nº 9.455/94, constando no item relativo ao terreno a Quadra 2, Carneira nº 801, Sepultura com as dimensões de 1,05m X 2,40m, no Cemitério Municipal dos Ribeiros, onde se encontram os restos mortais de DORALINA C. KUNZ (fl. 8). E no dia 12-11-01, portanto após quase cinco anos, expediu em favor de Maria Jesus, irmã de Lory, o Alvará de Cemitério nº 10.838/01, constando no item relativo ao terreno a Quadra 2, Carneira nº 1.568, com as dimensões de 1,05m X 2,40m, no Cemitério Municipal dos Ribeiros, onde se encontram os restos mortais de ALVES KUNZ.
Em primeiro lugar, o termo correto, aí, não é carneira, e sim carneiro. O vocábulo vem de carnariu, do latim, que no sentido clássico significa o animal mamífero e lanígero, porém no latim vulgar, não se sabe por que motivo, passou a ser empregado também no sentido de gaveta ou urna, nos cemitérios, onde se enterram cadáveres, e também no sentido de sepultura, e assim veio para o nosso idioma.
Em segundo lugar, pelo exame dos alvarás, conclui-se que o casal de Doralina e Alves Kunz estava sepultado em campas, jazigos, sepulcros, túmulos, carneiros individuais. Se me permitem ir no popular, em covas individuais; logo, nenhum conflito em relação aos alvarás concedidos para as irmãs Lori, a ser sepultada no mesmo túmulo de sua mãe, e Maria no mesmo túmulo de seu pai.
Acontece que, conforme reconhece o Município na contestação, apesar de constar nos alvarás “carneiras” (sic) diferentes, na realidade “concederam o uso do mesmo terreno” (fl. 35), conforme levantamento fotográfico (fl. 39).
Quer isso dizer que o casal de Alves e Doralina não foram sepultados em campas individuais, e sim única, deduzindo-se a partir daí a possibilidade de o local receber os restos mortais de apenas mais uma pessoa, haja vista lá ter sido sepultada a filha Maria Jesus, e agora haver o conflito face à pretensão da autora e também filha Lori Salete.
Como disse e repito, o conflito é constrangedor a todas as partes, inclusive a quem julga, pois, se devemos, por um lado, respeitar a memória e as vontades dos nossos antepassados externadas em vida, inclusive quanto ao destino dos respectivos restos mortais, sepultamento ou cremação, e veja-se, por exemplo, a questão dos testamentos, etc., por outro lado, também não devemos desconsiderar a vontade de quem ainda está vivo, posto em conflito com quem já faleceu, justamente em relação à cova, para onde ninguém quer ir, mas, queira-se ou não, a todos é uma questão de tempo.
Como primeira observação, não me parece haja total impossibilidade de ser respeitada a vontade de ambas as irmãs, na medida em que, atualmente, não é raro, após diversos anos do falecimento, os restos mortais serem decompostos e colocados em ataúde, féretro ou esquife menor, tipo urna ou cofre, precisamente com o fim de reduzir o espaço de quem já chegou e ampliar o espaço de quem está por chegar. Mas isso, depende das circunstâncias e especialmente das partes familiares.
Como segunda observação, dentro do conflito sui generis que se criou, a fim de que se possa atender ao postulado pela autora, cumpre investigar a conduta seja do Município seja na própria de cujus Maria Jesus, quer dizer, se houve conduta ilícita, pois a morte não apaga a responsabilidade pelos atos cometidos em vida, mesmo que seja em relação à escolha do local do próprio sepultamento.
Nesse sentido, a inicial afirmou ter sido “uma manobra planejada” por Maria Jesus, visto já estar gravemente enferma e que de outro modo não obteria consentimento da autora (fl. 2, final), isto é, sabia não só que sua irmã Lory Salete já havia comprado, como também sabia que só havia um único espaço e que, por estar gravemente enferma, os indicativos eram de que iria falecer antes, como aconteceu, decorridos apenas sete meses (fl. 30).
Porém, não há prova de que Maria Jesus tenha tido tal conduta, pelo menos consciente, de que estava ferindo escolha prévia de sua irmã, ora autora, vale dizer, prova de que ela agiu com dolo.
É verdade, o dolo não se revela apenas pelo flagrante probatório, mas também pelas circunstâncias. No caso, as circunstâncias não amparam a pretensão da autora na medida em que, conforme demonstrado acima, não havia conflito algum entre os alvarás, a autora no mesmo jazigo de sua mãe, e Maria no mesmo jazigo de seu pai. A questão de compreender que na realidade não havia duas sepulturas, mas só uma, tenho ser insuficiente para demonstrar que houve dolo, até porque fica muito no campo do entendimento de cada um. Ademais, quem estava afirmando a possibilidade era o Poder Público.
Conforme o art. 145 do CC, o dolo acidental só obriga à satisfação das perdas e danos, e é acidental quando, a seu despeito, o negócio seria realizado, embora por outro modo. O art. 147 estabelece que nos negócios jurídicos bilaterais, o silêncio intencional de uma das partes a respeito de fato ou qualidade que a outra parte haja ignorado, constitui omissão dolosa, provado que sem ela o negócio não se teria celebrado. E o art. 148 estabelece que o negócio também pode ser anulado por dolo de terceiro, se a parte a quem aproveito dele tivesse ou devesse ter conhecimento; em caso contrário, ainda que subsista o negócio jurídico, o terceiro responderá por todas as perdas e danos da parte a quem ludibriou.
Resulta desses dispositivos legais que, inexistindo prova de que a de cujos Maria Jesus agiu com dolo, por si só resta afastada a possibilidade de anulação do alvará por ela obtido, restando a responsabilidade do Município por dolo acidental ou silêncio intencional, relativamente aos danos, mas isso é irrelevante, pois a responsabilidade do Poder Público é objetiva (CF,art. 37, § 6º).
É claro, outra seria a solução no caso de o fato não acontecer com uma irmã da autora, e sim com algum estranho. Pode-se dizer que a pretensão de sua irmã, pré-falecida, de ser sepultada no mesmo jazigo dos pais é tão respeitável quanto.
Também outra poderia ser a solução, tivesse o conflito se estabelecido quando em vida Maria Jesus ou mesmo antes de sua inumação, inclusive por meio de medida judicial urgente, muito provável ser outra seria a desinência, face ao direito de preferência em relação à titular do alvará mais antigo. Como diz o brocardo latino: prior in tempore, potior in jus (primeiro no tempo, mais forte no direito). Agora, a prioridade se transferiu da celebração para a ocupação. Na bizarra disputa pelo lugar, só resta garanti-lo a quem nele chegou antes, e quieta non movere. Enfim, a essas alturas, tudo está como a própria morte: consumatum est. Sobeja à autora, em tese, indenização contra quem de direito.
Nesses termos, dou provimento à 2ª apelação (do réu Município), a fim de julgar o pedido inicial totalmente improcedente, restando prejudicados a 1ª (da autora) e o recurso adesivo (do réu Espólio).

Des. Carlos Roberto Lofego Caníbal (REVISOR)
É importante salientar que é quase inacreditável a litigância pelo objeto em tela em meio familiar.
De qualquer forma, o termo “carnariu” de onde advém o nome carneiro, tem origem no latim sim, mas no latim vulgar. Isto é, não vem do latim citadino e nobre.
Assim, não só inusitado porque o conflito que se estabeleceu é muito mais entre mortos e vivos do entre vivos exclusivamente mas também constrangedor para todos os envolvidos, inclusive para quem julga.
A meu ver é de se respeitar à vontade da falecida, mormente no âmbito familiar, não obstante as desavenças e conflitos. E isto porque a vida de uns e outros se passam, no momento, em locais, certamente díspares.
Assim como o relator, não vejo como prover o recurso. É que não se faz presente prova a respeito de vício de vontade que pudesse sustentar a pretensão levada a efeito. E só com a presença de um vício de vontade é que se pode anular um negócio jurídico validamente levado a efeito, em princípio.
Isso posto, acompanho o Relator.
É o voto.

Des. Henrique Osvaldo Poeta Roenick (PRESIDENTE) - De acordo com o Relator.

DES. HENRIQUE OSVALDO POETA ROENICK - Presidente - Apelação Cível nº 70010320521, Comarca de Passo Fundo: "À UNANIMIDADE, DERAM PROVIMENTO AO 2º APELO (DO MUNICÍPIO), RESTANDO PREJUDICADOS O 1º (DA AUTORA) E O RECURSO ADESIVO (DO ESPÓLIO RÉU), CONFIRMANDO-SE NO MAIS A SENTENÇA EM REEXAME NECESSÁRIO CONHECIDO DE OFÍCIO."
Julgador(a) de 1º Grau: ALEXANDRE SCHWARTZ MANICA
Fonte: Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul

Marcadores: , , , ,

0 Comentários:

Postar um comentário

<< Home