6.6.07

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE RECONHECIMENTO DE MATERNIDADE SOCIOAFETIVA CUMULADA COM PETIÇÃO DE HERANÇA. "FILHO DE CRIAÇÃO".

Apelação Cível nº 70014775159 – 7ª Câmara Cível – Porto Alegre
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE RECONHECIMENTO DE MATERNIDADE SOCIOAFETIVA CUMULADA COM PETIÇÃO DE HERANÇA. "FILHO DE CRIAÇÃO". INVIABILIDADE DA PRETENSÃO.
A relação socioafetiva serve para preservar uma filiação juridicamente já constituída, modo voluntário, pelo registro (que define, no plano jurídico, a existência do laço – art. 1.603 do CC), jamais sendo suficiente para constituí-la de modo forçado, à revelia da vontade do genitor. Dar tamanha extensão à parentalidade socioafetiva, resultará, por certo, não em proteção aos interesses de crianças e de adolescentes, mas, ao contrário, em desserviço a eles, pois, se consolidada tal tese, ninguém mais correrá o risco de tomar uma criança em guarda, com receio de, mais adiante, se ver réu de uma investigatória de paternidade ou maternidade. É bom ter os olhos bem abertos, para não se deixar tomar pela bem-intencionada, mas ingênua, ilusão de que em tais situações se estará preservando o princípio da dignidade da pessoa humana, pois o que invariavelmente se encontra, por trás de pretensões da espécie aqui deduzida, nada mais é do que o reles interesse patrimonial. É de indagar se o apelado deduziria este pleito se a falecida guardiã fosse pessoa desprovida de posses! Proveram, por maioria.
Espólio de A. S. B., representado por sua inventariante, E. B. D., apelante – J. C. M. S. H., apelado.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos. Acordam, os Desembargadores integrantes da 7ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado, por maioria, em prover a apelação, vencida a Presidente, que dava parcial provimento. Custas na forma da lei.
Participaram do julgamento, além do signatário, a eminente Sra. Desª Maria Berenice Dias (Presidente) e o eminente Sr. Des. Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves (Revisor).
Porto Alegre, 28 de junho de 2006.
Luiz Felipe Brasil Santos, Relator.
RELATÓRIO
Des. Luiz Felipe Brasil Santos (Relator) – Cuida-se de apelação interposta pelo Espólio de A. S. B., representado pela inventariante E. B. D., em face da sentença que julgou procedente o pedido deduzido na ação para reconhecimento de maternidade socioafetiva, cumulada com petição de herança, ajuizada por J. C. M. S. (fls. 252/261).
Sustenta que: (1) o autor buscou o estabelecimento de filiação de base socioafetiva em relação à falecida, a fim de ser reconhecido como seu único herdeiro; (2) a própria sentença consignou que inexiste vínculo biológico ou jurídico entre o autor e a falecida, e os elementos dos autos demonstram que apenas detinha a guarda legal do autor; (3) nunca houve qualquer ato de extinção do liame parental em relação aos pais legais do apelado; (4) o direito à herança só existe em favor de herdeiros testamentários ou entre aqueles com vínculo de parentesco legal; (5) a relação de guarda não forma vínculo parental; (6) a de cujus era apenas madrinha de J. C. e ajudou na sua criação, prestando-lhe assistência material, moral e educacional; (7) com a maioridade, a relação com a guardiã se extinguiu; (8) deve ser respeitada a vontade de A., que, em vida, não adotou o autor e tampouco deixou disposição testamentária em seu benefício; (9) mesmo que tivesse formado vínculos fortíssimos de afetividade e vivido como se filho dela fosse, nunca se daria a formação de um liame parental civil; (10) o recorrido foi e continua sendo filho de seu pai e de sua mãe; (11) a falecida não era uma pessoa ignorante, era enfermeira aposentada, com boa condição financeira e cultural, e contava com esclarecimentos suficientes para adotar ou testar em favor do recorrido, mas nunca o fez. Requer o provimento da apelação para que seja julgada improcedente a demanda (fls. 263/274). Houve contra-ra-zões (fls. 291/297).
O Ministério Público opinou, preliminarmente, pela nulidade do feito, porque os pais registrais não foram citados para integrar a demanda e, no mérito, se manifestou pelo não-provimento da apelação (fls. 302/305). Foi atendido o disposto nos arts. 549, 551 e 552 do CPC. É o relatório.
VOTO
Des. Luiz Felipe Brasil Santos (Relator) – Ao início afasto a nulidade denunciada pelo Ministério Público em vista da imprescindibilidade da inclusão dos pais registrais do apelado no pólo passivo da demanda.
De fato, estando em discussão o desfazimento da parentalidade registral, deveriam integrar a demanda os pais do autor da ação, pois se cuida de ação de estado cujo resultado gera efeitos de natureza pessoal e patrimonial que os alcançam.
Todavia, entendo por superada esta mácula ante os termos do § 2º do art. 249 do CPC, dispondo que "quando puder decidir do mérito a favor da parte a quem aproveite a declaração da nulidade, o juiz não a pronunciará nem mandará repetir o ato, ou suprimir-lhe a falta".
Assim, o provimento que dou à apelação, pelos fundamentos a seguir expostos, favorece o direito dos pais registrais, a quem aproveitaria a declaração de nulidade. Nesses termos, fica superada a nulidade argüida.
Como disse, no mérito, assiste razão ao apelante. J. C. ajuizou esta ação relatando que, com poucos meses de vida, foi "entregue por seus pais biológicos a A." para que ela o criasse e educasse como se filho fosse. Noticia que a guarda foi regularizada quando já contava quatro anos de idade e que sempre recebeu dela o tratamento de filho, consolidando uma relação socioafetiva. A. faleceu em agosto de 2000, e a ação foi ajuizada em outubro de 2003.
Refere também que, como não há em nosso ordenamento jurídico regulamentação da paternidade sociológica, a partir dos princípios constitucionais de proteção à criança, é possível se extrair os fundamentos para seu reconhecimento, pois demonstrada a posse de filho capaz de gerar efeitos jurídicos tais como a definição da filiação.
Todavia, com a máxima vênia de entendimentos diversos, equivoca-se o apelado. Está comprovado nos autos que A. foi nomeada guardiã do ora autor em junho de 1977 (fls. 13/14). Nas fls. 134/143, estão documentos relativos ao procedimento de guarda.
O apelado nasceu em fevereiro de 1973 e tem como pais registrais o casal D. M. S. e M. L. M. S. (fl. 136). Também, em sua carteira de motorista, emitida em março de 2004, estão indicados aqueles nomes como de seus pais (fl. 126) e o mesmo se repete na identificação da carteira profissional (fl. 129).
Atente-se, no caso ora em julgamento, aos termos da declaração dos pais de J. C. juntada ao procedimento de guarda: o casal concordava que o filho ficasse "sob a responsabilidade" de A. (fl. 137). Naquela petição inicial, A. se refere ao menino como seu afilhado (fl. 135).
Este caso é exemplo de vários arranjos familiares que não são raros. Em geral, um casal de singelas condições financeiras, almejando melhor futuro para sua prole, entrega o filho para ser educado por alguém com outra situação econômica e social.
Ocorre que atitudes desta natureza não significam ruptura dos laços jurídicos de parentalidade nem ensejam, por si sós, a formação de uma nova relação de maternidade ou paternidade. Os elementos dos autos demonstram, sem dúvidas, que o recorrido conviveu com A. que a ele deu assistência material e afetiva.
Todavia, a solidariedade e a vinculação afetiva que entre eles se tenha formado não detêm força suficiente para, primeiramente, desfazer a hígida relação jurídica de maternidade e filiação noticiada no registro civil nem para operar uma outra atribuição de maternidade via decisão judicial.
No caso em exame, a maternidade biológica coincide com a jurídica e foi estabelecida quando lavrado o assento de nascimento de J. C., ocorrido na vigência do casamento de D. M. S. e M. L.
Sem dúvida está demonstrado que durante alguns anos o apelado conviveu sob o amparo de A., mas esta circunstância não é capaz de gerar efeitos jurídicos tais como a constituição de nova relação de parentalidade.
Ocorreu aqui um típico caso de colocação em família substituta, o que se dá, nos termos do art. 28 do ECA, mediante guarda, tutela ou adoção. A guarda visa essencialmente a regularizar a posse de fato e atribui ao guardião a obrigação de prestar assistência material, moral e educacional à criança ou adolescente (art. 33 do ECA). Exatamente como se deu nos fatos narrados neste processo, o § 2º do ECA autoriza o deferimento da guarda, fora dos casos de adoção e tutela, para atender "situações peculiares ou suprir a falta eventual dos pais". Guarda é isto e tão-somente isto e não rompe o vínculo com a família de origem, bem como não lhes retira o poder familiar e tampouco os isenta da obrigação de sustento da prole (art. 1.566 do CC brasileiro).
Neste sentido o precedente: "Apelação. Alimentos. 1. O fato de o autor estar sob curatela de suas irmãs não lhe retira o direito de pleitear alimentos diretamente de seu pai, pois o vínculo de parentesco, gerador da obrigação alimentar, subsiste. 2. [...] Proveram parcialmente. Unânime". (AC nº 70014239412, 7ª Câmara Cível do TJRGS, Rel. Des. Luiz Felipe Brasil Santos, julgada em 12-04-06)
Portanto, entender que a situação concreta ora tipificada é apta a formar outra relação de maternidade é descaracterizar o próprio instituto da guarda, em que pese o autor ser maior ao tempo do ajuizamento desta demanda.
A pretensão do autor não encontra qualquer amparo jurídico no texto legal. Não se descuide de que o fato de o novo Código Civil conter o dispositivo do art. 1.593 ("o parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consangüinidade ou de outra origem") não põe por terra o sistema jurídico que organiza o direito de filiação.
Para melhor entendimento, menciono que, na proposta inicial do projeto de lei que resultou na atual codificação civil, constava que o parentesco seria natural, quando presentes laços de consangüinidade, ou civil, se resultasse de adoção. Porém, se fazia necessária a alteração que resultou na redação em vigor para dar coerência ao preceito do art. 1.597, que, a partir do antigo entendimento de que era legítima a prole concebida na constância do casamento, arrola os filhos que serão presumidamente tidos como concebidos no casamento, fazendo incidir a presunção de maternidade a quem lhes deu à luz e a de paternidade ao marido dessa mulher – até mesmo se a fecundação resultou de métodos de inseminação artificial.
Isso dito, há que se reconhecer, no conceito legal de parentesco civil, que laços de outra natureza – que não apenas a consangüínea – dão sustentação à relação jurídica de parentalidade e podem ser invocados em defesa de uma situação familiar consolidada quando alguém, do locus de pai, de mãe ou de filho, deduzir pretensão para seu desfazimento, alegando ausência de identidade genética.
Em síntese, a formação ou a atribuição de uma relação jurídica de parentalidade (maternidade, paternidade ou filiação) migra do mundo dos fatos para o mundo jurídico por uma das vias previstas em lei. Ou seja, pela adoção, pela incidência ao caso concreto de uma presunção legal (pater is est) pelo fato do casamento, ou, quanto ao pai, como resultado do julgamento de procedência de ação de investigação de paternidade ou, ainda, em face da prática de um ato jurídico de reconhecimento voluntário de paternidade. Isto porque a maternidade, na filiação matrimonial, resta determinada pela evidência do parto (mater semper certa est) e, igualmente, pela incidência da presunção legal da paternidade (pater est).
Não se olvide que os vínculos jurídicos de parentalidade são excepcionalmente dissolúveis [sic], de modo que até mesmo a alegação de ausência de consangüinidade entre pai e filho, por si só, não propicia o desfazimento de tais laços.
Tanto na perspectiva da maternidade quanto da paternidade é que se deve interpretar o art. 1.593 do CC brasileiro não como causa para formação da relação jurídica parental, mas tão-somente como elemento de manutenção dos vínculos higidamente constituídos por um dos meios previstos em lei, não obstante inexistente o liame biológico entre o pai e o filho (Stein, Thais. Formação e Estabilidade da Paternidade no Novo Código Civil, trabalho apresentado no II Congresso Sul-Brasileiro de Direito de Família, IBDFAM, Gramado, jun./2006).
Além disto, a inscrição de nascimento praticada conforme os mandamentos da legislação registral funda a relação jurídica de filiação, maternidade e paternidade, e estabelece o estado civil, pessoal e familiar. A filiação não é direito disponível. Não reconhecemos força tão-somente à intervenção da autonomia da vontade para regulação dos vínculos familiares porque entre nós se dá a determinação legal da filiação a partir de um sistema estruturado na inscrição do nascimento do filho, no matrimônio da mãe e na presunção de paternidade do marido.
Reitero que o fato de hoje o conceito de parentesco estar dissociado de uma necessária vinculação consangüínea – como antes demonstrado – não implica dizer que a posse de estado de filho constitua causa para o manejo de ação na qual é posta a pretensão de estabelecimento da relação jurídica de parentalidade a partir da alegação de vínculos de socioafetividade em detrimento e em oposição a laços jurídicos preexistentes e higidamente formados por uma das vias previstas em lei, como também já destaquei.
Se é verdade que a filiação não se esgota na concepção, gestação e parto pela imaturidade do infante para se incluir social, afetiva e juridicamente, cabe ao direito de filiação promover esta necessidade, fazendo-o "mediante a criação de um estado civil, o status filii que pode, ou não, se reforçar em um status familiae" (Castan Tobeñas, Jose. Derecho Civil Español, Comum y Foral: Relaciones Paterno-filiales y Tutelares, 10ª ed., Madrid, Reus, S. A., 1995, p. 84).
Compreender que, na atualidade, se respiram os ares do pós-positivismo, com preceitos legais arejados por valores éticos e morais que encontram sua expressão maior na Constituição Federal – que inseriu como fundamento da República Federativa do Brasil a dignidade da pessoa humana (inc. III do art. 1º) –, também significa perseguir a segurança jurídica.
Neste cenário, mostram-se temerárias as facilitações às pretensões para alterar as relações jurídicas de parentalidade, sejam elas representadas pelos laços entre mãe e filho ou por aqueles firmados com pai e filho – o que se dá muitas vezes por motivações econômicas e fere, indubitavelmente, a ética e a dignidade pessoal.
Corrobora o entendimento alguns precedentes desta Corte: "Declaratória. Pedido de declaração da condição de herdeiro. Impossibilidade jurídica do pedido. 1. Para que alguém possa ser considerado herdeiro é necessário ostentar um título jurídico, seja decorrente da relação de parentesco, observada a ordem de vocação hereditária, seja decorrente de um testamento. 2. Se o recorrente não foi adotado pelo de cujus, nem foi reconhecido por ele como filho, nem é herdeiro testamentário, não possui a condição de herdeiro. 3. A possível condição de ‘filho de criação’ não confere capacidade sucessória. Recurso desprovido, por maioria". (AC nº 70013740618, 7ª Câmara Cível do TJRGS, Rel. Des. Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, julgada em 15-02-06)
"Alvará judicial. Levantamento de valores de conta-corrente de falecida. Filiação não comprovada. O parentesco constitui relação jurídica que deve ser comprovada documentalmente, e é o vínculo que une duas pessoas ao tronco ancestral comum. A condição de filho de criação, a par do seu significado afetivo, não constitui relação jurídica. Recurso desprovido". (AC nº 70010943199, 7ª Câmara Cível do TJRGS, Rel. Des. Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, julgada em 01-06-05)
"[...] Sentença extintiva do processo por carência de ação. Confirmação, haja vista a ilegitimidade dos autores, que não possuem vocação hereditária na sucessão da alienante. O ato de acolher pessoa como filho de criação, não origina qualquer efeito jurídico. [...]" (AC nº 598010726, 6ª Câmara Cível do TJRGS, Rel. Des. Osvaldo Stefanello, julgado em 10-03-99)
"Ação ordinária de ‘reconhecimento de qualidade hereditária, na condição de filho’. O filho ‘de criação’ não pode ser equiparado ao filho adotivo. Assim, pouco importa a incidência ou não, das normas constitucionais. Ação improcedente. Apelo desprovido, unânime". (AC nº 596098509, 8ª Câmara Cível do TJRGS, Rel. Des. Eliseu Gomes Torres, julgada em 10-10-96)
No sistema aqui vigente, nos termos do art. 1.603 do CC brasileiro, a filiação é provada pela certidão do termo de nascimento, e o estado que lá ficou assentado somente admite modificação se provado erro ou falsidade no registro, o que não se deu neste caso concreto (art. 1.604 do CC brasileiro).
Vale transcrever lição de Gustavo Tepedino acerca do art. 1.604 do CC brasileiro (antigo art. 348) e que se aplica aqui: "[...] não se pode transformar o art. 348 em apanágio para todas as hipóteses de desconstituição da paternidade presumida, já que o dispositivo autoriza a nulidade do registro exclusivamente nas hipóteses de erro ou falsidade, não se aplicando à atribuição legal de paternidade do marido derivada da relação conjugal válida, hipótese em que, a toda a evidência, não se poderia cogitar de erro ou falsidade". (A Disciplina Jurídica da Filiação na Perspectiva Civil-constitucional, In: Temas de Direito Civil, 2ª ed., rev. e atual., Rio de Janeiro, Renovar, 2001, p. 406)
Se hoje novos paradigmas sustentam o direito de filiação, onde a situação jurídica familiar pode estar assentada em uma realidade registral (ou jurídica), biológica ou sociológica, no caso concreto, prepondera, em detrimento da realidade social, a verdade biológica e jurídica que não foi, em tempo algum, desfeita.
Em síntese, a relação socioafetiva (que prefiro denominar sociológica) serve para preservar uma filiação juridicamente já constituída, modo voluntário, pelo registro (que define, no plano jurídico, a existência do laço – art. 1.603 do CC), jamais sendo suficiente para constituí-la de modo forçado, à revelia da vontade do genitor.
Dar tamanha extensão à parentalidade socioafetiva resultará, por certo, não em proteção aos interesses das crianças e adolescentes, mas, ao contrário, em desserviço a eles, pois, se consolidada tal tese, ninguém mais correrá o risco de tomar uma criança em guarda, com receio de mais adiante se ver réu de uma investigatória de paternidade ou maternidade.
É bom ter os olhos bem abertos, para não se deixar tomar pela bem-intencionada, mas ingênua, ilusão de que em tais situações se estará preservando o princípio da dignidade da pessoa humana, pois o que invariavelmente se encontra, por trás de pretensões da espécie aqui deduzida, nada mais é do que o reles e rasteiro interesse patrimonial. É de indagar se o apelado deduziria este pleito se a falecida guardiã fosse pessoa desprovida de posses! Dispenso-me da óbvia resposta!
Por fim, a manutenção da procedência da ação, fazendo constar no registro de nascimento apenas o nome da pretensa mãe socioafetiva, com exclusão do nome de ambos os pais biológicos, como o fez a r. sentença, vai além do que postulou a própria inicial, que não requereu a exclusão do nome paterno.
De outro lado, manter D. M. S. como pai registral ao lado de A. como mãe, geraria uma situação no mínimo teratológica, pois a filiação se estabeleceu a partir de um imperativo legal em face do matrimônio do casal, mas ao lado do varão passaria a figurar uma mãe que não é a sua esposa e com quem jamais manteve qualquer relacionamento! Além disso, de todo inviável, com a devida vênia, excluir o patronímico paterno S. H., como o fez a r. sentença, substituindo-o pelo patronímico S. B., de A. Todas essas circunstâncias apenas põem à calva a impossibilidade de acolher a pretensão aqui deduzida.
Por todo o exposto, dou provimento à apelação para julgar improcedente a pretensão. Em decorrência, inverto os ônus sucumbenciais, que restam suspensos, por desfrutar o apelado do benefício da gratuidade.
Des. Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves (Revisor) – De acordo com o Relator.
Desª Maria Berenice Dias (Presidente) – A grande mudança protagonizada pelo Instituto Brasileiro do Direito de Família foi a alteração do enfoque do próprio conceito de família. Passou-se a visualizar os vínculos familiares pela ótica da afetividade, referendando, aliás, o que diz a Constituição Federal.
No momento em que houve o reconhecimento da união estável – que é um vínculo que se constitui pela afetividade – como entidade familiar, sendo-lhe outorgada especial proteção, é preciso reconhecer que a Constituição viu afeto, emprestou-lhe efeitos jurídicos.
A partir daí, o afeto passou a merecer a tutela jurídica, e isso não só nas relações interpessoais, mas, também, nos vínculos de filiação. Este foi um grande passo que, como referido pelo eminente Relator, está no Código Civil, por uma sugestão redacional do próprio IBDFAM. A filiação não se constitui somente pelos vínculos de consangüinidade, mas por outras formas também, e aí está a filiação que ele prefere chamar de sociológica, que todos chamam de socioafetiva, mas que eu prefiro chamar de filiação afetiva.
Indiscutivelmente esta criança que foi entregue a esta mulher, ainda neném, antes de ter um ano de vida, ninguém duvida que era seu filho. Assim ele foi criado, assim ele constou no INSS, assim foi indicado no Montepio. Quando ela ficou doente, ele foi nomeado seu curador. A lei estabelece quem pode ser nomeado curador. Na lista, estão as pessoas que a lei escolhe, os parentes. A lei não diz que filho de criação ou que um estranho podem desempenhar este múnus.
Mas há mais, como o filho era casado, morava em outro lugar, deixou uma filha morando junto com sua mãe. Ou seja, a neta ficou morando e cuidando da avó. Quando ela ficou doente, quem chamaram? O filho.
O vínculo entre ambos permaneceu durante toda a vida. Ela tinha a guarda de fato desde antes de o filho ter um ano de idade. Na época de ele entrar no colégio, firmou em juízo um termo de guarda e responsabilidade, para criá-lo como se seu filho fosse.
Ela era uma pessoa singela. Ela até outorgou procuração para que um advogado entrasse com o que na época se chamava de legitimação adotiva. Então, como negar o interesse dela em ter aquele filho como seu? Nunca houve nenhuma manifestação dela no sentido de que não reconhecia ele como seu filho.
O próprio Código Civil admite a adoção póstuma, contanto que tenha tido início o processo de adoção. A posição de vanguarda é deste Tribunal, pelo voto do Des. Luiz Felipe, que admite a adoção mesmo que não tenha iniciado a ação de adoção. O voto brilhante, se transformou em paradigma. Basta estar comprovado o desejo de adotar, o desejo de ter o filho como seu, para se admitir a adoção. Inclusive já há várias outras decisões nesse sentido. Assim, mesmo que não tenha começado o processo de adoção, é possível o reconhecimento do vínculo de filiação depois da morte do genitor.
Portanto, não há como não se reconhecer que essa mulher tinha esse filho como seu. Confesso que não consigo enxergar, nesta busca dele do reconhecimento da filiação, um mero interesse de ordem econômico-financeira. Ela só tem essa casa, onde morava junto com uma filha dele. Se o imóvel não ficar para ele, vai ficar para uma irmã dela, com quem ela não se dava e não convivia. E essa é a situação: ou fica para o filho, com quem conviveu desde que ele nasceu e que cuidou sempre dela, inclusive colocando a filha para morar com ela, ou vai ficar para uma irmã, com quem ela não se dava, com quem não convivia.
Simplesmente não consigo enxergar aí interesse de ordem econômica. Também não vejo a possibilidade de haver um desestímulo no sentido de que as pessoas daqui para frente nunca mais vão pegar filhos de criação com medo... Que não peguem! Ou existem vínculos afetivos que se estabelecem ou não existem vínculos afetivos! Ninguém é meio filho. Se as relações se estabelecem pela afetividade, não acredito que o amor vá ser medido em função disso.
Imperioso reconhecer, sim, uma filiação afetiva, com efeitos jurídicos, desde que o menino lhe foi dado sob guarda, para ser criada como se filho fosse. Essa é uma filiação, reconhecida pela lei.
Não há a necessidade, como preconizado em preliminar pelo Ministério Público, de se desconstituir o processo para serem citados os pais registrais, até porque o filho é maior, e não exige a lei que, na adoção de maiores, haja a concordância dos pais registrais.
O único reparo que faria à sentença é que, já que a ação é de investigação da maternidade, deve haver a alteração somente da filiação materna, mantendo o vínculo de filiação com relação ao pai biológico, que ainda persistiria.
Com esses termos, voto pelo parcial provimento do recurso.

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